Não vamos “enxugar gelo” com PVC’s!


Ditado popular que serve para a gente refletir na prática pedagógica de cada dia, principalmente dos sábados. Alguém já se perguntou o que é um Pré Vestibular Comunitário? Aparentemente ele pode ser visto como resultado de um grupo de pessoas que querem ajudar outras pessoas e está certo, mas não termina por aí a reflexão! O PVC implica numa reflexão mais profunda que nos remete aos problemas estruturais da nossa sociedade.

Primeiramente, precisamos compreender que os PVC’s espalhados pelo Brasil são resultado de um problema social e são ínfimos frente a este problema. Além do que, os PVC’s são medidas paliativas de estudantes, igrejas, sindicatos, movimentos sociais e outros grupos da sociedade civil. São paliativas porque servem para aliviar a situação atual de exclusão dos filhos dos trabalhadores pobres na universidade que saem da educação pública com dificuldade para ingressar na universidade pública. Ou seja, os PVC’s estão fazendo o papel do Estado (e por que o Estado não faz?).
Historicamente os trabalhadores na sociedade dividida por classes se organizam para criar alternativas diante da exclusão, por exemplo, as favelas e ocupações de prédios vazios são alternativas de moradias dos trabalhadores da cidade, ocupações de terras são alternativas para moradia e trabalho dos trabalhadores rurais, as greves são alternativas dos trabalhadores reivindicarem melhores condições de trabalho e salário, os PVC’s são alternativas que os trabalhadores encontram para ingressarem na universidade, etc. Isto mostra que quando o Estado não cumpre o seu papel (ou talvez o papel do Estado seja este mesmo) com a classe trabalhadora ela encontra alternativas, porém as alternativas devem caminhar para a superação deste sistema e não para reproduzi-lo.
 
Para servir como alternativa de superação, os PVC’s, devem superar um dilema que os assolam: um pré vestibular com mensalidade barata e com pessoas voluntárias ou um pré vestibular comunitário e com pessoas militantes/voluntárias. Para a primeira opção é fácil, seleciona bastante conteúdo das matérias e faz com que os estudantes aprendam. Ainda nesta “receita” não leve em consideração a diferença de aprendizado dos estudantes e nivele por cima. Para a segunda opção é um pouco mais difícil, primeiro o educador deve ter uma leitura do mundo crítica e fazer com que sua disciplina sirva para a superação da sociedade desigual. Por exemplo: a história e a geografia podem mostrar a construção histórica de classes sociais e de geografias desiguais; a matemática pode mostrar que a expectativa de vida do IBGE é uma média e talvez não sirva para dizer a expectativa de vida de seus familiares, pois média não leva em consideração classe social, ou apresentar uma fração que diz que dois terços do petróleo brasileiro são da Petrobras e que um terço é do setor privado; o português pode diferenciar o tratamento da mídia aos movimentos sociais e ao Estado que diz “MST invadiu a fazenda do banqueiro Daniel Dantas” e “O BOPE ocupou o Complexo do Alemão” e ver as implicações sociais destes tratamentos; e por aí vai...
É evidente que os exemplos acima são meramente ilustrativos, mas a essência é esta. Fazer com que os estudantes de PVC’s saiam com uma leitura do mundo crítica e que sirvam para superar esta sociedade capitalista. É importante integrar os PVC’s nas questões sociais levantadas pelos trabalhadores como luta por melhores salários, fim da criminalização dos movimentos sociais, fim da desigualdade de gênero, fim do preconceito homossexual, melhores condições de trabalho, democratização dos meios de comunicação, educação de qualidade para todos e outras coisas.
Enfim, caso contrário o Pré Vestibular Almirante Negro fará seus 50, 70, 90 ou até 100 anos de existência. Mostrando que apesar de alguns filhos/as dos trabalhadores entrarem na universidade esta sociedade ainda estará produzindo pobres. Uma vez li uma citação de um intelectual chamado Makarenko que me reanimou para a licenciatura “cada pessoa que eduquemos, deve ser útil à causa da classe (trabalhadora)”. Não podemos “enxugar gelo” com o nosso trabalho, pois se não vira caridade! Então cabe aos PVC’s fazerem parte de uma concepção de mundo contra-hegemônica em qual a educação tem um papel fundamental.
Gustavo Azevedo, geógrafo e educador.

4 comentários:

Angelo disse...

Fala, Gugu! Tava sentindo falta de post novo, mas entendo que a batalha do dia-a-dia nos tira tempo para organizar certas idéias, pensamentos que chegam aos montes a todo instante, e pô-las no papel, ops!, ou melhor, no blog!

A primeira vez que eu enfrentei uma sala de aula foi num PVC... E foi uma experiência marcante em todos os sentidos possíveis e que impactaram em diversos aspectos da minha vida até hoje. Mas foi uma luta, literalmente. Uma luta tanto contra os "condicionantes externos", que eram a motivação do nosso trabalho, quanto os problemas internos - e que eram muitos! E não estou falando de "problemas físicos" ou "operacionais", mas atitudes divergentes: de um lado, pessoas que sabiam que aquilo representava uma luta política, que era um movimento, de outro aqueles que enxergavam aquilo como caridade, ou seja, algo que você faz quando pode ou quando dá. Falta de professores nos sábados ensolarados era coisa comum - afinal não se podia perder uma praia num dia maravilhoso desses. Reuniões pedagógicas e de planejamento? Você tinha dois ou três professores que participavam e olhe lá. A maioria não queria participar da construção do movimento, nem fazia questão. Era algo como "ah, eu vou lá na Igreja de vez em quando ajudar uns alunos carentes, tadinhos". Eu detestava isso...

Angelo disse...

Eu defendo a livre adesão do cidadão a qualquer movimento ou organização, não acho que alguem deva ser empurrado compulsoriamente para nada, mas no meu entendimento ou você está dentro e fazendo alguma coisa, agindo, participando, construindo, ou então é melhor ficar lá fora, contribuindo de outra maneira. Em todo caso, com o passar dos anos, entrei um pouco em crise com os PVCs: vi gente usando o movimento como trampolim político, vi cooptação e vi, pasme, censura! Aliás, voltei de Salvador a poucos dias, depois de um trabalho de campo no qual entrevistei lideranças de movimentos como MST, MRLT, entre outros, e o que vi foi isso: cooptação (pelo governo) e fortíssima censura interna. Isso mexeu comigo, porque me fez pensar no seguinte: como podemos acusar a mídia comercial/corporativa de criminalizar os movimentos sociais, o que é uma forma de censura, se os próprios movimentos, internamente, sufocam e silenciam qualquer esboço de crítica que venha de dentro? Sinceramente, acho isso uma vergonha. Isso aí descende diretamente do stalinismo: coerção e repressão por "desvio de ortodoxia". Muitos dos PVCs que eu conheci ou estavam se encaminhando para isso ou eram organizações frágeis ou politicamente débeis. No primeiro caso, jamais contribuirão para superação do capitalismo, porque já não são mais organizações democráticas - além de terem sido capitaneados intelectualmente por uma "intelligentzia". Enquanto os movimentos em geral, e os PVCs em particular, não superarem esta contradição, não superarão nada!

Angelo disse...

Ainda com relação à superação dessa sociedade que está aí, marcada pela espoliação e pela desigualdade econômica e política, creio que, no caso dos PVCs, isto se deve menos ao que aprendem nas disciplinas do que à participação no movimento e na contrução e prática de valores democráticos dentro dessas organizações. Até porque essas desigualdades econômicas, sociais e políticas são cientificamente criadas, o que ocorreu, inclusive, nos regimes ditos socialistas do século XX. Afinal, como os anarquistas e socialistas libertários sagazmente observaram, há muito mais semelhanças entre o capitalismo e o socialismo de tipo soviético do que crê nossa vã filosofia (e as práticas adotadas por algumas organizações e movimentos, "cientificamente fundamentadas", não desmentem isso, infelizmente). Abração, Gugu. Apesar de ser um anarquista ateu, desejo a ti e a toda sua família um Feliz Natal!

Aguinaldo Medici Severino disse...

abraços meu caro. vez ou outra acompanha tuas idéias por aqui. cousa boa.
a.m.severino